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Categoria: Gabinete de Imprensa

    Esta comemoração dos 100 anos do nascimento de Álvaro Cunhal, em Moimenta da Beira, sobre o tema «Luta e organização dos Pequenos e Médios Agricultores e Compartes dos Baldios» oferece-nos a oportunidade, a todos os títulos entusiasmante, de lhe juntarmos Aquilino Ribeiro.

Estamos nas terras do imorredouro, enquanto houver língua portuguesa, escritor Beirão, em vésperas  dos 50 anos da sua morte (amanhã, 27 de Maio). Cinquenta anos fazem-se, também, do prefácio de Álvaro Cunhal à edição brasileira de «Quando os Lobos Uivam», de Aquilino, sobre a luta dos povos dos baldios da Serra dos Milhafres. Serra dos Milhafres, serra ficção das reais serras e montes, e até areais, assaltados pela ditadura de Salazar. (Diga-se: mesmo sem esta coincidência de datas de números redondos, sempre será oportuno e exaltante falarmos, e cruzarmos, dois desses vultos maiores do século XX português. Pelas suas dimensões humanas, culturais, cívicas e políticas).

Assim vou falar-vos de Álvaro Cunhal através das suas palavras sobre Aquilino Ribeiro.

Falar-vos do cruzamento de Álvaro Cunhal com Aquilino Ribeiro, em torno de um assunto bem presente nas suas reflexões, no seu trabalho, nas suas vidas – as terras baldias, o roubo e a florestação forçada pela ditadura de Salazar, a sua restituição aos povos e aos compartes  com o 25 de Abril.

Esse cruzamento está bem presente no já referido prefácio de «Quando os Lobos Uivam».

Prefácio que, merecendo certamente observações – que o próprio Álvaro Cunhal certamente faria mais tarde (e de certa forma fez) – em torno das sempre presentes polémicas das formas e dos conteúdos e das imbricações do social na obra de arte, constitui uma apaixonada e reconhecida homenagem a Aquilino Ribeiro. Ao democrata e antifascista. Ao grande escritor. Ao grande cidadão que foi este serrano, tão junto da sua gente, tão perto das suas raízes, e tão universal nos seus horizontes de homem do mundo inteiro.

O texto de Álvaro Cunhal começa assim: «No prefácio da 1.ª edição de Quando os Lobos Uivam escreveu o autor: "Hei-de morrer com a enxada na mão.» Em 27 de Maio de 1963, com 77 anos de idade, a promessa cumpriu-se. Trabalhador infatigável, escreveu até aos últimos dias da vida. Escreveu sempre, com amor pelo povo, inconformado com a opressão, a tirania, o arbítrio, impostos a Portugal pela ditadura fascista.».

Julgo até ser pouco vulgar no Álvaro Cunhal político falar assim: «A própria data da sua morte tem o valor dum símbolo. 28 de Maio é a festa fascista oficial, o aniversário do golpe militar que em 1926 suprimiu as liberdades democráticas e pôs fim ao regime parlamentar. (...) Dir-se-ia que Aquilino, já no fim da vida, se quis poupar a assistir uma vez mais à comemoração da data odiosa.». E acrescenta: «Aquilino morreu no momento de maior coerência entre a sua actividade de escritor e as suas ideias políticas, no momento de maior proximidade, fraternidade e identificação com o povo que sempre amou.»

Álvaro Cunhal traça depois um breve relato biográfico, identificando as suas raízes camponesas, serranas, o percurso do conspirador pela República, do activista cultural na República, da sua participação na revolta de 7 de Fevereiro de 1927 – a primeira revolta militar contra o golpe de 28 de Maio e a ditadura em construção! Analisa o seu percurso literário. Anota a referência e classificação pelo escritor da Universidade de Coimbra olhando para Salazar e a fina flor fascista, «a "sede do obscurantismo e da reacção", a "instituição arcaica cheirando a bafio", donde nunca pôde sair senão "o mau cheiro dos professores mais estúpidos e mais ignorantes da terra".». Destaca a grande obra de Aquilino «A Casa Grande de Romarigães», e refere o seu papel na constituição da Sociedade Portuguesa de Escritores – «organização legal dos escritores, animada po um espírito democrático e antifascista», de que foi o primeiro Presidente.

É um Álvaro Cunhal que recorda que «em 1958 , quando me encontrava preso já há nove anos e havia já terminado a pena a que fora condenado, Aquilino apôs corajosamente a sua assinatura num Apelo dos intelectuais portugueses, protestando contra a ilegalidade da situação em que me encontrava e exigindo a minha libertação.». Aliás, considera que 1958 foi «um ano decisivo na vida e actividade de Aquilino», considerando que as lutas populares e decisivas desse ano, e em particular a campanha eleitoral para a Presidência da República de Humberto Delgado «tocaram fundo o velho escritor».

Tão fundo que, com a sua «enxada», «com a sua poderosa arma» – é Álvaro Cunhal que assim escreve – «Aquilino intervém na luta e desfere um ataque certeiro contra a ordem fascista. Em Dezembro de 1958 publica o romance Quando os Lobos Uivam.».

E, naturalmente, é um Álvaro Cunhal que destaca na sua leitura «os dois temas centrais que se fundem numa mesma acção dramática: a luta dos camponeses contra o roubo das suas terras pelo governo fascista e o funcionamento do aparelho repressivo, em especial dos tribunais especiais que julgam os chamados "delitos políticos".». Os tribunais plenários que têm no romance uma descrição impiedosa!

É um Álvaro Cunhal estudioso e conhecedor da terra «baldia» que então se pronuncia:

«A luta dos camponeses contra o roubo das terras para a realização do plano fascista de "repovoamento florestal" abrange importantes sectores do campesinato em algumas regiões do país. Ainda há pouco, os «baldios», isto é, as terras cujo usufruto pertence colectivamente desde épocas imemoriais aos povos respectivos, ocupam mais de 400 000 hectares quase 5% da superfície territorial do país.» (...) «Com a actual estrutura agrária, tirar os "baldios" aos povos serranos é dar um golpe mortal ao efectivo pecuário dos camponeses pobres, reduzir a sua já pobre vida a um nível de miséria, liquidar as pequenas explorações camponesas dessas regiões.

Os planos de "repovoamento florestal" do governo fascista que fazem parte da sua cruzada de expropriações dos camponeses têm em vista o roubo em larga escala dos baldios para os transformar em florestas do Estado; apressar a proletarização dos pequenos agricultores que, sem os pastos naturais e as culturas nos "baldios", se vêem forçados a trabalhar como assalariados nas terras dos camponeses ricos e nas novas florestas do Estado.».

Álvaro Cunhal fala ainda longamente da importância do romance na condenação do regime de Salazar e do seu «sucesso fulminante. Quando a polícia correu a apreendê-lo, dos 9000 exemplares da primeira tiragem restavam apenas 32 nas livrarias.».

E depois denuncia o processo judicial que a ditadura fascista moveu contra Aquilino, no mesmo Tribunal Plenário, «que corajosamente desmascarara no seu romance»!

Sublinha depois a dupla derrota do fascismo salazarento: «Aquilino não chegou a ser julgado e condenado. Em sua defesa levantou-se a opinião democrática portuguesa e um importante movimento de solidariedade internacional. Os escritores portugueses propuseram Aquilino para o prémio Nobel da literatura. O governo foi obrigado a recuar. À derrota que a publicação do romance para ele representou, juntou-se a derrota no processo escandaloso.».

Segue-se a denúncia dos crimes do regime fascista contra a cultura e os artistas portugueses.

É um Álvaro Cunhal cultor das artes, que aprecia e valoriza a enorme riqueza e beleza do «estilo» e «originalidade vocabular»: «É tão fluente o manancial vocabular e por vezes tão caracterizadamente regional, que qualquer tradução perde necessariamente o sabor português e popular, a musicalidade, a fantasia com que os portugueses, ao lerem Aquilino, se deleitam. Podem imaginar-se os tradutores, correndo aflitos aos dicionários e quedando desapontados pela ausência do que procuram. O formalismo de Aquilino tem porém uma raiz e um significado particular. Aquilino não foi apenas o homem culto que investigava e conhecia a língua portuguesa através da tradição literária. Aquilino estudou profundamente a linguagem popular dos montanheses da sua região e a linguagem popular em geral e deu à linguagem popular honra literária. O estilo e vocabulário de Aquilino é também uma forma da ligação do escritor com o povo, uma expressão do amor do escritor com o povo, uma forma de alçar o povo português ao primeiro plano da literatura.».

É um Álvaro Cunhal rendido ao talento e ao cidadão que escreve: «Aquilino atinge com este romance o momento culminante da sua vida de escritor e de lutador democrático.».

Termina com uma referência às homenagens com que as forças democráticas comemoraram, em Maio de 1963 (faz, neste Maio em que nos encontramos, também precisamente 50 anos), os 50 anos da actividade literária do escritor.

E é a partir da frase de Aquilino, em discurso pouco antes de morrer: «Meus queridos camaradas, olhem sempre em frente, olhem o sol!» que Álvaro Cunhal prevê o fim do regime fascista, a liberdade e democracia porque lutou também Aquilino Ribeiro. «Vivendo há 37 anos nas trevas fascistas, o povo português luta sem desânimo e com confiança olha o futuro, olha o sol. E triunfará.».

Há uma outra coincidência na oportunidade desta iniciativa. Mas que é uma má notícia. Não satisfeito com todas as malfeitorias já concretizadas ou em curso, o governo PSD/CDS e Coelho e Portas acabam de desencadear uma nova ofensiva contra os direitos históricos dos povos, que a Constituição da República consagra, na gestão dos baldios. É uma nova tentativa de roubo dos baldios que, estamos certos, não passará!

No epílogo de Quando os Lobos Uivam, Aquilino Ribeiro delicia-nos com a fábula de um casal de lobos.

«A loba espraiava olhos pelo terreno imediato. A última trovoada tinha ravinado o solo, entumecido o ribeiro, mudando-lhe a madre aqui e acolá, esgaivando nas arribas covões e braços absurdos. Agora e cheio e sussurrante, tão cheio que nem todos os pontos da margem eram bons para beber, sem se molhar. Mas lá descobriu um lugar de jeito e despediu. Mergulhou o focinho no veio da corrente e, mais fluida que uma cobra a esgueirar-se para o seu agulheiro, a água fria e deliciosa escorregou-lhe no canal. parou um momento. Tornou a beber. Satisfeita, depois de uma pausa durante a qual aspirou os ventos, enristando o focinho, rompeu a uivar. Um uivo agudo como uma lança.

Que queria ela dizer? Que farejava?».

Para mal dos nossos pecados, e sem qualquer intenção de pôr em causa a biodiversidade e a preservação das alcateias, há novamente lobos, a uivar nas nossas terras...

Moimenta da Beira, 26 de Maio de 2013

Intervenção de Agostinho Lopes, membro do Comité Central do PCP